Páginas 21 a 26: Trajetória de Azambuja Calado

reticente. Não queria estender a mão pra ninguém. Aí ela não perdoava minha desobediência. 
Lembro-me que certa vez ela disse: "Não atravesse o córrego sem que eu esteja por perto." Não adiantou, fui escondido dela. Parei na prancha de madeira que era a travessia do córrego. Fiquei ali brincando com girinos e peixinhos, de repente caí de costas, molhei-me todo com aquela água lodosa. Ela, quando me viu, não teve dúvidas, chamou-me pra passear no terreiro. Isso mesmo, toda vez que havia uma bronca, ela me chamava pra passear no terreiro. Dentro de casa não dava palmadas, não usava chinelo nem varinha de marmelo. Na presença de visitas ela não dava mole pra mim. Era só bagunçar, lá vinha o convite.
Na hora da janta quase sempre pintava  uma pinguinha.  Pinguinha mesmo, menos de meia dose. 
Certa vez, não sei dizer qual a minha idade na época, eu quis beber. Ela não pestanejou, colocou numa canequinha uma pinga em dose menor do que  aquela que ela havia tomado.  Não me dava na mão.  Colocava a canequinha no chão,  no chão de terra batida, bem no meio da pequena cozinha. Vim a saber, depois de várias vezes daquele ritual, que era pra eu não me embebedar.  Também, com aquela micro-dose não daria para embriagar, apesar da idade. Após ingerir aquele sagrado gole, comia um suculento feijão preto, angu, couve rasgada e ovo frito.  Ovo quando não tinha carne de porco ou peixe.  (Ieié não pescava todos os dias). Antes de dormir, ainda tomava um reforçado café preto com broa de fubá. Broa feita na panela, uma delícia. Havia um pequeno forno de barro, mas ela aproveitava o fogão
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à lenha, já quente, após fazer a janta. No forno ao contrário, dava mais trabalho aquecê-lo apenas para se fazer uma broa. Quando não ganhávamos  biscoitos da tia Geralda do Zé Arantes, era aquele café antes de dormir.
Tio Zé Arantes,  Tia Geralda, que também era professora, o filho Geraldinho e Dica25, filha de criação, eram os que moravam mais próximos de nós.  Eles moravam do lado de cima da pequena estrada, próximo ao canavial do Ieié.  Preciso tomar um fôlego, pitar meu cigarro de palha, pra depois retomar minhas anotações. Quem sabe não me lembro de outras ocasiões e de outros fatos.
Aqui de novo, passadas mais de vinte e quatro horas, volto e penso: tenho que abrir, ou não, minhas anotações para as pessoas fora do meu convívio? Olhe
é melhor não parar de trabalhar. Lá mais adiante, se houver uma chance, sem dúvida será mostrado pra todo mundo.
Enquanto isso em Vaivém, eu de camisola, subindo na goiabeira. Não era necessário ter fruto para subir na árvore. Bastava ter em mãos um cipó ou uma corda qualquer que oferecesse resistência. Fazia-se um balanço. Lá costumávamos chamar isto  de gangorra26. Não precisava ser muito longa a corda ou o cipó. Uma ponta amarrada num galho e na outra ponta um pedaço de pau roliço. Assim, com criatividade cria-se o seu brinquedo. Monta-se o próprio lazer, às vezes solitário. Não era a todo momento que havia outra criança para brincar. Meu avô e Ieié também faziam alguns
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25 - Dica - Apelido de Maria das Graças.
26 - Gangorra - Aparelho para diversão infantil.

 

brinquedos pra mim, tudo artesanal. Um carrinho de boi ou mesmo um alçapão pra pegar passarinho.
Fora as brincadeiras em Vaivém, era comum fazer uma salada de pepino como lanche  da tarde. Minha avó não gostava que eu comesse a tal salada. Dizia que era indigesta e que eu não mastigava direito. Ela tinha medo que eu ficasse doente. Aí eu ficava num canto resmungando: - mãieeeê, eu quero pepino, mãieeeê, me dá pepino. Ela esbravejava comigo: "Cala a boca, menino, você não pode comer pepino." Eu atazanava tanto que, por fim, ela me liberava a tal salada de pepino. O pepino muitas vezes era plantado no arrozal e em terreno bastante úmido. Ainda hoje, naqueles confins, muito residentes  mantêm uma horta em suas casas. Na casa da Vó Inácia às vezes havia uma horta com couve, jiló, chuchu e alface. Chico Afonso não ficava na moleza. Levantava cedo, antes de todos, lavava a cara, fazia o café e, após tomar café com farinha ou broa, pegava a enxada e saía.
Quando era época de plantio fazia-se um mutirão. Ele, Ieié, Pedro e outros previamente combinados. Quando acontecia de ter mais participantes no preparo da terra, na semeadura, enfim, que colaborassem, não havia transação com dinheiro. Pagava-se depois trabalhando. Eu, muito pequeno, descalço, não gostava de ir ao local de trabalho. Em épocas de plantio ou colheita. Não gostava dos espinhos. Espinho benzinho, que penetrava meus pés. Demorei muito tempo para me acostumar calçado. Minha vó ia descalça e mandava eu usar o chinelo dela. Apesar do chinelo dela ser maior que meus pés, eu acabava usando-o. Ela precisava levar almoço
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para todos. Ela carregava uma enorme gamela27 sobre sua cabeça. Dentro da gamela, levava arroz,  feijão, legumes, carne  e angu. Eu a ajudava levando a chaleira com café e as canecas de esmalte.
Às vezes era chato demais, como não bastasse os espinhos, nos meus pés havia bichos de pé. Passado algum tempo, depois que Ieié se casou, aos poucos fui me acostumando com uma botina mais folgada. Acho que era usada e eu ganhei de alguém, já amaciada.
Em época de colheita era divertido. Eles traziam o milho e o feijão em carroS de bois. Eu ajudava a guardar o milho no paiol. O feijão ficava no terreiro para secar e depois, todos os dias espalhávamos o feijão ainda em cascas pelo terreiro. Esta tarefa se dava por vários dias. No final da tarde, juntava-se todo aquele feijão num canto próximo ao paiol, no dia seguinte espalhava-se de novo. Por fim com as cascas secas, era hora de "bater" o feijão. Lá vinham Chico Afonso, Ieié e Pedro com umas varas enormes. As varas eram tiradas lá na capoeira, no alto do morro. Ai se iniciava o processo de "bater" feijão. Ainda hoje é assim naquela localidade. Com o feijão espalhado pelo terreiro,  começava-se a sová-lo até que ele se desprendesse das vagens. Após o feijão se desprender, passa-se um rastelo para separá-lo das palhas. As palhas do feijão são amontoadas num canto e com uma vassoura ajuntam-se os grãos. Ajuntados os grãos, são ensacados e vão para o paiol. Se a produção for muito boa, vende-se parte dela. O restante fica para consumo e novo plantio.
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27 - Gamela - Bacia de madeira para cozinha.

 

Tia Fia contribuiu muito para que eu usasse calçado. Afinal, ela cuidava de mim como se fosse seu filho. Tirava os bichos de pé, fazia curativo. Assim, eu já usando calçado, saía pra roça onde houvera a colheita. Com um saco nas costas eu ia pegando o que restou. Às vezes uma bandeira de feijão28 que eles haviam deixado ou algumas espigas de milho. Em vários dias de pegar aqueles restolhos29, eu os debulhava e vendia a algum tropeiro que passasse   por Vaivém comprando milho e feijão. Era assim que eu conseguia algum dinheiro, na época, suado. Se o dinheiro era bastante eu comprava um porco pra engordar ou uma galinha poedeira. 
Para a primeira comunhão tia Fia me preparou muito bem. Fez-me roupa nova, toda branquinha, e me presenteou com calçado novo. A festa da primeira comunhão foi maravilhosa. Naquele dia levantamos todos muito cedo. Todos não, Chico Afonso nesse dia não levantou cedo, pois não ligava pra essas coisas. Tomamos café e saímos em caminhada ainda sob uma réstia da lua30. Só depois de alguns quilômetros o sol deu as caras. A roupa nova e os sapatos eu levava numa sacola. Chegando a São Caetano do Xopotó  fomos pra casa do Chico Arantes. Muitos que moram na roça, na zona rural, possuem casa na rua. Nem Chico Afonso nem Seinácia tinham casa na pequena cidade. Na casa de Chico Arantes lavei os pés, coloquei a roupa nova e o calçado. Tia Fia penteou meus cabelos e ajeitou a pequena gravata. Feito isso, saímos: minha avó, Ieié, Tia Fia e sua irmã Sevalina e alguns garotos que tinham mais ou menos a minha idade. Fomos caminhando pela Rua do Buraco em direção à igreja.
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28 - Bandeira de feijão - Vários pés de feijão, colhidos e colocados entre os pés de milho para secarem.
29 - Restolhos - Restos da colheita do milho e do feijão.
30 - Réstia da lua - Um feixe de luz do luar.

 

Outros garotos, também vestidos a caráter, saíam de suas casas  acompanhados. Chegando à igreja, vimos que vários garotos e garotas, já se encontravam acomodados nas primeiras filas. Tia Fia encaminhou-me a uma senhora que organizava as crianças (meninas de um lado e meninos de outro). Pouco tempo depois, adentra ao altar nosso querido Padre Argemiro. Naquela época não havia microfone, o discurso era “no gogó”. O Santo Padre deu boas-vindas a todos e deu início ao ritual. Eu tremia, estava muito emocionado e nervoso. Após quase meia hora, o Padre fez o sermão. Depois do sermão, Padre Argemiro voltou pro altar, para dar continuidade à missa. Eu suava, não via a hora de acabar tudo aquilo. Terminada a consagração, por fim chegou o momento da comunhão, da minha primeira comunhão. Em fila, todos iam em direção ao Padre, abriam a boca, mostravam a língua e recebiam a hóstia sagrada. Hoje é diferente, as pessoas pegam a hóstia e elas mesmas a colocam na boca. Pois bem, terminada a missa, foram servidos uns lanches para toda a garotada e seus parentes. Lembro-me bem. Os lanches eram a base de bolo de fubá, biscoito de polvilho, queijo Minas, café com leite, etc. A festa foi maravilhosa. Eu tinha sete anos. Pelo menos, ao que me lembro, era com sete anos que oficializava aquele ritual. Não sem antes se preparar durante vários meses. Após a missa das dez era obrigado a freqüentar o catecismo. Só assim todos achavam que o sujeito estava preparado. Claro, recebendo orientação do Padre Argemiro, filho da terra, como tantos outros que ordenaram padres e bispos. Eu mesmo tenho um primo que é bispo: Dom Antônio Afonso de Miranda, sobrinho de Chico Afonso e que vive na cidade de Taubaté - SP.
Padre Argemiro era irmão de José Inácio, farmacêutico local e o primeiro Prefeito da pequena cidade. Na cidade não tinha hospital, não havia médico. Zé Inácio era nosso médico, cuidava de todos
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